Lei Estadual Nº 22.419/2023 entra em vigor e coloca mais de 3 mil famílias acampadas por Reforma Agrária em Goiás sob risco de despejo sem ordem judicial
Acampamento Garça Branca, às margens da GO 173, em Jaupaci (GO) (Foto: Tiago de Melo)
Nesta segunda-feira, 27, o governador Ronaldo Caiado sancionou a Lei Estadual Ordinária Nº 22.419/2023, aprovada pela Assembleia Legislativa do Estado de Goiás (ALEGO) no último dia 21. Sob o argumento de instituir a “política estadual de segurança pública nas faixas de domínio e lideiras” das rodovias estaduais e federais do estado de Goiás, a lei estabelece ações para a identificação, a imputação de crimes e a aplicação de penalidades a pessoas que ocupem as margens de estradas, e define quais instituições públicas do estado devem operacionalizar as medidas.
A lei sancionada mantém integralmente o texto do Projeto de Lei Nº 1186/2023, apresentado pelo próprio governo do estado à Assembleia Legislativa do Estado de Goiás (ALEGO) no último dia 6 de novembro. O texto classifica moradores de acampamentos como “invasores” e instrumentaliza autoridades para coibir situações de ocupação qualificadas como “ilícitas”, determinando a condução coercitiva de ocupantes pela polícia militar, a realização de busca e apreensão de materiais, afastamento de sigilos, indiciamentos, aplicação de multas e a exclusão da condição de beneficiários de programas sociais do Estado de Goiás.
A nova lei entra em vigor 21 dias após ser apresentada à ALEGO, onde a maior parte dos legisladores ignorou os diversos alertas sobre a inconstitucionalidade da matéria, acelerando o processo de tramitação, que foi concluído em apenas duas semanas. Mais de 3 mil famílias que vivem nos 51 acampamentos localizados às margens de rodovias em Goiás ficam agora sob risco de despejo, sem garantia de seu direito de defesa e de seus direitos fundamentais.
A Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar do Estado de Goiás recebeu com muita preocupação a notícia da aprovação da lei. “O governador do estado de Goiás sempre apoiou o latifúndio, mesmo o improdutivo. Mais uma vez, ele se posiciona contra aqueles que produzem alimentos e querem estar na terra para nela trabalhar, gerando renda e dignidade para suas famílias. Para manter a concentração de terra, ele opta por tirar as pessoas de suas casas, aumentando a miséria nas cidades”, disse Orlando Luiz dos Santos, dirigente da federação.
Orlando relata que o processo de criminalização dos movimentos não começou agora. “Desde 2021, o governo têm mapeado lideranças e dirigentes sindicais do campo. A polícia militar foi diversas vezes, sem qualquer justificava, aos sindicatos, querendo os nomes de lideranças dos acampamentos”, contou.
O dirigente da FETEAG avalia que todos os movimentos do campo devem estar vivendo agora a mesma preocupação, sobre a segurança das famílias acampadas. “Muitas construíram suas casas, vivem e trabalham há 10, 12 anos nas áreas. Precisamos do apoio da justiça, já que a grande maioria dos deputados de Goiás aprovam todas as matérias de interesse do governo, mesmo sendo inconstitucionais”, disse, em apelo.
Ainda no início da tramitação, o Deputado Mauro Rubem pediu o arquivamento do projeto apontando para sua inconstitucionalidade, mas teve seu voto em separado rejeitado pela Comissão Mista da Assembleia. “Essa é uma lei extremamente arcaica, atrasada. Já estamos elaborando uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) junto ao STF, por meio do Partido dos Trabalhadores (PT). Precisamos mostrar à sociedade goiana o caráter violento e criminoso do governo Caiado”, disse o deputado. Para ele, o empenho do governo em criminalizar os movimentos que lutam por Reforma Agrária no estado está relacionado também ao seu objetivo atual de aproximação política com a extrema direita, com objetivos eleitorais.
NOVA LEI ESTADUAL PODE AUMENTAR A VIOLÊNCIA CONTRA FAMÍLIAS ACAMPADAS EM GOIÁS
No dia 21 de novembro, após a primeira aprovação da Lei Nº 22.419 em plenário, o bispo auxiliar da Arquidiocese de Goiânia, Dom Levi Bonatto, em articulação conjunta com o arcebispo de Goiânia, Dom João Justino e em comunhão com outros bispos da CNBB-CO, acompanhou a Comissão Pastoral da Terra Regional Goiás e representantes dos movimentos sociais do campo à Procuradoria-geral de Justiça de Goiás (PGE), onde foram recebidos pelo procurador-geral do estado, Dr. Ciro Terra Peres. No encontro, o grupo manifestou a preocupação de que a nova lei respalde o aumento da violência contra famílias acampadas, que já vivem em situação de grande vulnerabilidade social.
Na reunião, foram apresentados dados parciais sistematizados pela Comissão Pastoral da Terra, referentes ao primeiro semestre de 2023, que mostram Goiás em primeiro lugar, entre os estados brasileiros, no que diz respeito a registros de conflitos por terra, com 85 ocorrências registradas. Neste período, o governo estadual aparece como o principal agente causador da violência no campo no estado.
Os dados mostram que os conflitos por terra não estão relacionados à ocupação de fazendas particulares, mas sim com ações de perseguição a comunidades que já vivem na terra e buscam efetivar seu direito de permanência no campo. O grupo argumentou também que não há registros relevantes de acidentes de trânsito envolvendo famílias acampadas à beira de estradas e nem de outros crimes que possam evidenciar que os acampamentos ofereçam riscos para o conjunto da sociedade.
Os movimentos do campo afirmam que a maior parte das famílias que vivem hoje às margens da rodovia estão há mais de cinco anos nos acampamentos, onde garantem sua moradia e seu sustento na terra, chamando a atenção das autoridades para a necessidade de agilidade na garantia legal da Reforma Agrária.
A Igreja Católica manifesta preocupação com o agravamento do quadro de exclusão social no estado de Goiás.
INSTITUIÇÕES ESTADUAIS E FEDERAIS DENUNCIAM INCONSTITUCIONALIDADES DA NOVA LEI
Visitas da CSF, no dia 22/11, ao Acampamento Garça Branca, em Jaupaci e, no dia 29/11, em acampamento Mundo Novo, em Jataí: trabalho de construção de soluções pacíficas pela comissão do TJ-GO podem ser atropeladas pela nova lei
Desde que a proposta veio a conhecimento público e, agora, com a sanção da nova Lei Estadual, diversas instituições e autoridades estaduais e federais emitiram notas ou se manifestaram sobre a inconstitucionalidade da matéria.
Ainda às vésperas da segunda votação no plenário da ALEGO, a Defensoria Pública do Estado de Goiás (DPE-GO) enviou aos deputados e deputadas uma Nota Técnica, listando os diversos princípios constitucionais desrespeitados pela lei, que restringe direitos fundamentais de uma população que já não tem seus direitos básicos garantidos pelo Estado. Entre outros problemas, a nota diz que o texto caracteriza formas de discriminação e de abuso de autoridade contra a população acampada.
“De forma equivocada, o Estado de Goiás enxerga, como solução para evitar ocupações, a criminalização dos ocupantes e dos movimentos sociais, envidando forças nas consequências, desconsiderando causas e possíveis soluções alternativas”, argumentou a nota.
Nesta quarta-feira, 29, o Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários (DMCCA) do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) publicou uma nota em que manifesta preocupação quanto às repercussões da Lei Estadual e a possibilidade de acirramento de conflitos agrários em Goiás.
A nota do DMCCA afirma que a nova lei tem o potencial de criminalizar o exercício dos direitos constitucionais da liberdade de expressão e da liberdade de reunião, fragilizando a própria democracia e o Estado Democrático de Direito. “É preciso alertar que os movimentos de luta pela terra, quando realizam acampamentos à beira de estradas, tanto estaduais quanto federais, buscam manifestar-se pelo cumprimento de políticas públicas, sendo a política pública constitucional da reforma agrária a principal reivindicação”, explica a nota.
Neste mesmo sentido, o superintendente do MDA em Goiás, Valdir Misnerovicz, reafirmou que a Reforma Agrária e a organização social são direitos constitucionais e que, assim sendo, lutar por reforma agrária é o mesmo que lutar para que a Constituição Federal seja de fato implementada. “O acampamento é uma forma de organização na luta para o acesso à Terra, ou seja, o direito de poder estar organizado e, de forma organizada, cobrar do Estado que garanta o direito constitucional de acesso à terra”, disse Misnerovicz.
Dr. Maíra Coraci, diretora da Câmara de Conciliação Agrária do INCRA Nacional, lamentou a aprovação da Lei, ressaltando que o texto é inconstitucional. “Qualquer ação de remoção de pessoas deve ser precedida do devido processo legal, respeitando o contraditório e com o instrumento jurídico adequado. Esperamos que referida norma seja revogada e que o governo do estado de Goiás possa contribuir junto ao governo federal em políticas públicas concretas que tragam solução digna às milhares de famílias vulneráveis que aguardam serem inseridas no Programa de Reforma agrária”, disse Coraci.
A diretora da CCA do INCRA lembrou ainda que o próprio poder judiciário se posicionou de maneira contundente na garantia do direito à dignidade humana nas ações que versam sobre despejos, com a aprovação da Resolução número 510 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que hoje orienta o trabalho das Comissões de Conflitos Fundiários (em Goiás renomeada para Comissão de Soluções Fundiárias), criadas nos Tribunais de Justiça dos estados. Outro apontamento da nota técnica da DPE-GO é o de que a Lei Estadual desrespeita as atribuições da CSF do TJ-GO.
Elias D’Ângelo, superintendente do INCRA Goiás SR04, afirmou que foi orientado a não falar sobre a nova lei, que afeta diretamente os acampamentos por Reforma Agrária no Estado de Goiás.