Trabalho escravo rural concentra 94,58% dos 739 registros de trabalhadores/a resgatados/as no estado; este número representa 23% do total de resgatados em todo o país.
O balanço anual das ações de fiscalizações realizadas pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) confirma o que as notícias e dados parciais divulgados ao longo do ano já apontavam: Goiás foi estado com maior número de pessoas resgatadas do trabalho escravo em todo o Brasil entre janeiro e dezembro de 2023. O estado concentra cerca de 23% dos registros de trabalhadores resgatados em todo o país, que somam 3188 pessoas.
Ao todo, foram 739 pessoas resgatadas do trabalho escravo em Goiás. As 84 ações de fiscalização realizadas no estado identificaram 21 casos de trabalho escravo, distribuídos em 19 dos 42 municípios onde houve fiscalização de denúncias.
O trabalho escravo rural é, de longe, o maior responsável pelo volume de pessoas resgatadas, concentrando 94,58% dos resgatados em todo o estado em 2023. Dentre o total de casos identificados no estado, 17 foram em atividades rurais e culminaram no resgate de 699 pessoas. Mais da metade delas – 423 trabalhadores ou 60,51% – estavam empregadas em lavouras de cana-de-açúcar e quase a totalidade delas estavam contratadas por meio de empresas de prestação de serviço, ou seja, de forma terceirizada.
Violações de direitos trabalhistas cresce com terceirização
De acordo com Roberto Mendes, auditor-fiscal e coordenador da Superintendência Regional de Trabalho em Goiás (SRT-GO), as violações relacionadas aos direitos dos trabalhadores no campo têm se intensificado nos últimos anos. “Mesmo nas denúncias em que não foi configurado trabalho escravo, a situação dos trabalhadores era bem ruim e foram lavrados vários autos de infração, devido a diversas formas de violação de direitos”, diz o auditor-fiscal
Para Mendes, é possível observar a terceirização como fator de descumprimento da legislação trabalhista. “Na busca por maior lucro, empreendedores e empresários do agronegócio têm, cada vez mais, terceirizado atividades, o que ficou permitido de forma irrestrita desde 2017, com a Reforma Trabalhista realizada do presidente Michel Temer. Para as empresas de prestação de serviço, que vendem a mão de obra dos seus empregados para outros contratantes, a redução de despesas é o que aumenta os seus ganhos, o que incide em violações de direito, principalmente no que se refere às condições mínimas de trabalho e de alojamento em caso de trabalhadores migrantes”, avalia o auditor-fiscal.
Alpiniano Lopes, da Procuradoria Regional do Trabalho, Ministério Público do Trabalho (MPT), afirma que, no último ano, as equipes de resgate que atuam em Goiás encontraram trabalhadores em situações muito piores do que em anos anteriores. “Tivemos inclusive casos de empregadores que não aceitaram os resgates e foi preciso ajuizar ações civis públicas para que fossem pagas as verbas indenizatórias para os trabalhadores, como no caso de uma usina de álcool de Inhumas”, informou Lopes.
Registros realizados em ação de fiscalização em usina de álcool no município de Inhumas, interior de Goiás (Fotos: Dr. Alpiniano Lopes)
De acordo com o procurador, houve um retrocesso na situação do estado, em relação ao trabalho escravo, mas houve também um incremento na atuação das equipes de fiscalização. Em todo o país, os esforços, que além do MTE e do MPT incluem Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Defensoria Pública, culminaram no maior número de resgates dos últimos 14 anos, em recordes em verbas rescisórias pagas e no total de fiscalizações em todo o território nacional.
José Maria de Lima, da Federação dos Trabalhadores Rurais Empregados Assalariados de Goiás (Fetaer), diz que a federação e os sindicatos fazem permanentemente o trabalho de encaminhar denúncias de trabalhadores, mas que, durante o governo Bolsonaro a situação das equipes de resgate era delicada, porque que, além de enfrentar os patrões, era preciso também enfrentar o governo. “Agora estamos dialogando com o governo estadual e com o governo federal para tentar garantir, como há em outros estados, algum ajuda para os trabalhadores da cana-de-açúcar durante a entressafra”, afirmou José Maria.
Condições das equipes de fiscalização
Dois dias após a divulgação do balanço das fiscalizações, os Auditores-Fiscais do Trabalho iniciaram ações de mobilização por melhores condições de trabalho, reivindicando o cumprimento pelo governo federal de acordos feitos com a categoria, e entregando às secretarias de inspeção seus cargos de chefia. Os auditores seguem em serviço mas, sem ações de coordenação, o que acarreta na paralisação das ações de fiscalização de denúncias de trabalho escravo.
“Lamentavelmente os Auditores-Fiscais têm enfrentado diversas dificuldades: o concurso que não sai, as equipes reduzidas, o sucateamento da profissão, as condições de trabalho. Eles prestam um bom serviço e têm nosso apoio total na busca de melhores condições para realizá-lo”, disse o procurador Alpiniano Lopes.
O Peso do agronegócio nos registros de trabalho escravo
De acordo com o Panorama do Trabalho Escravo no Brasil, atualizado permanentemente pela Campanha Nacional Permanente “De Olho aberto para não virar escravo”, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), com dados de todos estados do Brasil, o número de trabalhadores resgatados do trabalho escravo rural em Goiás quase que triplicou entre 2022 (258) e 2023 (739). O grande volume de resgatados se concentra em poucos casos: 80% dos 739 resgatados de Goiás foram retirados de 4 canaviais e 2 lavouras de alho e cebola.
Xavier Plassat, um dos coordenadores da Campanha, explica que os casos mais emblemáticos, em que há informações mais detalhadas ou acesso informações da fiscalização, mostram que o trabalho escravo afeta principalmente as áreas dominadas pelo agronegócio. “Nas estatísticas do trabalho escravo, as atividades rurais têm peso preponderante. Em 2023, em todo o país, 19% dos casos de trabalho escravo foram no cultivo da cana de açúcar. Se a gente somar essas atividades com mais casos, que incluem ainda várias lavouras como café, alho, cebola, e também a pecuária, o desmatamento e a carvoaria, chegamos a quase 2/3 dos casos e dos resgates em territórios do agronegócio. Isso aponta para uma questão que é estrutural, que é sistemática”, avalia Xavier.
A Campanha De Olho para ninguém virar escravo!
Desde 1997*, a Campanha acompanha grupos do campo em situação de vulnerabilidade ao trabalho escravo, realizando ações de prevenção orientadas para uma maior vigilância nas comunidades. A campanha recebe e encaminha denúncias, monitora sua efetiva fiscalização, realizada registros sobre a escravidão contemporânea em todo o país e participa em comissões estaduais e na Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), destinadas a monitorar a política pública de erradicação do trabalho escravo no país.
Os dados registrados pela campanha seguem uma metodologia rigorosa. “Consideramos como um ‘caso identificado de trabalho escravo’ um caso para o qual temos em mãos uma denúncia consistente e confiável, fiscalizada ou não, ou um caso no qual uma fiscalização identificou trabalho escravo. No caso de Goiás, todos os casos identificados que registramos foram em decorrência de fiscalização do Ministério do Trabalho**”, explica Plassat.
Xavier observa que, em 2023, também foi identificado um caso de trabalho escravo doméstico no meio rural em Goiás, no município de Quirinópolis, onde uma senhora foi resgatada de uma fazenda. “É possível observar, neste e em muitos outros casos, a mentalidade embutida no empregador, quando a justificativa recorrente é que ‘era melhor para a pessoa’, que ‘a pessoa queria o trabalho’, que ‘era como se fosse da família’. Isso faz parte de uma herança cultural escravagista típica de certa elite brasileira e mostra como são diversos os campos de atuação no combate ao trabalho escravo. É preciso denunciar e combater o modus operandi de empregadores gananciosos e sem escrúpulo presentes no agronegócio, é preciso engajamento no trabalho de base junto a grupos vulneráveis, é preciso fortalecer as identidades de raça e de gênero das comunidades camponesas, é preciso realizar incidência política sobre o tema, e também desconstruir, com informação e dados, a falácia dos empregadores escravocratas”, arremata Plassat.
*Os registros da Campanha se iniciaram dois anos após o início das ações de fiscalização e combate ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil. Em 1995, após o Brasil ter sido denunciado junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), no Caso José Pereira, dentro de outras várias ações de pressão para o Estado reconhecer e combater a prática do trabalho escravo no país, o Governo criou o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (Gertraf), integrado por diversos Ministérios, e o Grupo Especial de Fiscalização Móvel no Ministério do Trabalho (GEFM), que foram o ponta-pé inicial na construção da política nacional de erradicação do trabalho escravo.
** O número total de trabalhadores encontrados em situação de trabalho escravo no Brasil em 2023, nas tabelas da campanha, neste momento, é de 3402, 212 a mais que o total divulgado pelo MTE: a diferença inclui algumas ações realizadas sem participação de Auditores Fiscais do Trabalho e poucas ações do MTE cujo relatório ainda não foi concluído para ser inserido no quadro final da SIT.