Trabalhadoras e trabalhadores permanecem ocupando fazenda que foi usada para tráfico internacional e exploração sexual de mulheres
Por Júlia Barbosa | CPT Nacional
As famílias Sem Terra que ocupam a Fazenda São Lukas, no município de Hidrolândia, em Goiás, seguem reivindicando que a política pública de Reforma Agrária seja cumprida e que o acesso à terra seja garantido. No dia 26 de julho, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) notificou administrativamente a Prefeitura de Hidrolândia, bem como as famílias que ocupam a fazenda, incluindo o caseiro que atualmente reside no local e que, segundo o prefeito do município, atua como servidor público, para que desocupem o imóvel em um prazo de dez dias desde a notificação.
Segundo a Superintendência Regional do Incra em Goiás, o órgão está estabelecendo uma mesa de negociação, junto ao Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Fundiários do Ministério do Desenvolvimento Agrário e a Câmara de Conciliação Agrária do Incra, para a continuidade e manutenção das tratativas a fim de que a Fazenda São Lukas seja convertida em assentamento da reforma agrária.
No dia 27 de julho, estiveram reunidos representantes da Procuradoria do Incra Nacional, da Câmara de Conciliação Agrária do Incra Nacional, da Câmara de Conciliação Agrária do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), da Superintendência do Incra SR04, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e da Ouvidoria Geral da Defensoria Pública do Estado de Goiás. A reunião teve o intuito de discutir e adotar medidas jurídicas para garantia e implementação do assentamento.
Entenda o caso
Na manhã da última segunda-feira (24), famílias Sem Terra ocuparam novamente a Fazenda São Lukas, no município de Hidrolândia, em Goiás. Na ocasião, segundo relatos das famílias, o fornecimento de água foi cortado a pedido da Prefeitura de Hidrolândia, e as famílias, incluindo crianças, só tiveram acesso à água após às 17h. O governo de Goiás, por meio da Polícia Militar, estabeleceu um cerco para dificultar a entrega de alimentos na ocupação, além de ter impedido a entrada da imprensa na área. De acordo com Marcelo Gosch, superintendente regional do Incra, a PM violou direitos constitucionais de livre acesso à informação e de liberdade de imprensa, barrando o acesso da equipe de reportagem ao local.
Governo de Goiás interferiu em área federal com forças da Polícia Militar do estado. Foto: Júlia Barbosa | CPT Nacional
No começo da noite, representantes das instituições competentes (Incra, MDA e SPU), dos trabalhadores sem terra, da Defensoria Pública do Estado de Goiás, da Comissão Pastoral da Terra e o Deputado Estadual Mauro Rubem estiveram reunidos no gabinete do prefeito de Hidrolândia, José Délio Jr., para reafirmar a propriedade da terra pelo Incra e garantir a permanência das famílias no acampamento. Na ocasião, o prefeito garantiu que não acionaria as forças policiais do estado, que não têm competência no caso, para a desocupação. A prefeitura do município tinha um Acordo de Cooperação Técnica, que foi suspenso pela SPU, e que em nenhum momento configurava posse da terra pela prefeitura.
“A gente sabe viver, sabe trabalhar, plantar, colher, comercializar e sabe socializar. No futuro, com esse assentamento, o que a gente quer é contribuir com o município, ser parte dele”, afirmou liderança Sem Terra presente na reunião.
No dia seguinte (25), o Governo de Goiás, por intermédio da PM/GO, utilizou de ação ilegal para criminalizar Acampamento. Segundo relatos e registros, diversas placas foram instaladas na entrada do local, com dizeres que tentam associar as ações legítimas dos trabalhadores ao banditismo, além de ameaças verbais e uso de drones e armas de grosso calibre para intimidação dos acampados.
O coordenador da CPT Regional Goiás, Saulo Reis, reafirmou o papel social da CPT junto aos trabalhadores do campo e a defesa das famílias acampadas: “A luta desse povo é justa, afinal, a Reforma Agrária é lei. Aqui é um pessoal trabalhador. As pessoas que estão aqui e precisam sair, saem para trabalhar e voltam para continuar lutando pelos seus direitos”, reiterou.
Da propriedade da terra ocupada
Tanto o Governo de Goiás quanto a Prefeitura de Hidrolândia não têm competência para interferir na área, visto que essa é de responsabilidade do Governo Federal, de propriedade do Incra. De acordo com o portal oficial do Governo Federal, no dia 27 de abril deste ano, a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) publicou, no Diário Oficial da União (DOU), uma portaria que declarava a fazenda São Lukas como de interesse social para regularização fundiária, a cargo do Incra, integrando-o ao Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA). Assim, com a visibilidade da primeira ocupação, em 25 de março deste ano, e diante da manifestação de interesse do Incra nesta área para a criação de um assentamento de reforma agrária, iniciou-se o processo para tratar da destinação da área arrestada em 2016, no âmbito da Operação Fassini, que prendeu a quadrilha de traficantes de mulheres.
O termo de transferência de domínio do imóvel rural foi feito pela União, representada pela Superintendência do Patrimônio da União em Goiás (SPU-GO) para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), representado pela Superintendência Regional do Incra em Goiás, e assinado no dia 23 de junho de 2023 pelos respectivos superintendentes Uzias Ferreira Adorno Júnior e Elias DÁngelo Borges. O processo de destinação está registrado sob o número 19739.115153/2023-59.
Mulheres em luta, semeando a resistência
A primeira ocupação foi marcada pelo protagonismo de mulheres do MST, como ação integrada à Jornada Nacional de Luta das Mulheres Sem Terra, iniciada no último dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, cujo lema é: “Pela Vida das Mulheres Contra Fome e a Violência: Mulheres Sem Terra em Resistência”. A ocupação dessa propriedade é simbólica para o conjunto das mulheres sem terra, pois trata-se de uma área em que dezenas de mulheres, entre elas muitas adolescentes, foram vítimas de violência, aprisionadas e posteriormente traficadas para a Suíça, onde eram submetidas à exploração sexual. O esquema foi mantido por três anos e as vítimas eram, principalmente, mulheres goianas de origem humilde das cidades de Anápolis, Goiânia e Trindade.
“Estamos aqui retornando à Fazenda São Lukas e reivindicando que esta e outras áreas sejam destinadas às famílias Sem Terra, que lutam pela Reforma Agrária e pelo direito à terra para trabalharem, mas, também, para eliminar a fome, o desemprego e a falta de moradia” – liderança e trabalhadora rural Sem Terra.
O retorno das famílias, além de pautar a emergência da implementação de novos assentamentos da Reforma Agrária em Goiás, se coloca como alternativa de combate à fome, ao desemprego, à desigualdade de renda, e à falta de moradia. Em Goiás, o MST aguarda há quase 10 anos a criação de novos assentamentos, hoje com mais de 3 mil famílias acampadas pleiteando um pedaço de terra.