Reflexão produzida para o caderno Conflitos no Campo 2024 – Reflexões sobre os dados
Evandro Rodrigues / Coordenação da Campanha contra o Trabalho Escravo

Hoje, no Brasil, são várias as formas de desrespeito aos direitos e à dignidade da pessoa humana, principalmente em relação à classe mais desassistida do país. A concentração da renda, da terra e dos meios de produção acomete, uma parcela enorme da população a uma situação de vulnerabilidade aos mais diversos tipos de violência. A questão do trabalho escravo representa, de fato, essas mazelas sociais impostas à classe trabalhadora.
Mesmo com a promulgação da Lei Áurea no Brasil, trabalhadores continuaram sendo submetidos a relações de trabalho exploratórias e, mesmo diante das várias denúncias sobre a permanência dessas situações, somente em 1995 o Estado brasileiro reconheceu publicamente a existência de trabalho escravo no país. Pedro Casaldáliga, bispo da prelazia de São Felix do Araguaia/MT, em sua carta pastoral denominada “Uma igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social”, de 1971, já denunciava, além dos problemas relacionados aos conflitos fundiários envolvendo camponeses sem terra e indígenas, as condições de trabalho dos peões.
Em 1997, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), entidade criada em 1970 e ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), instituiu uma campanha permanente de combate e prevenção ao trabalho escravo. Essa campanha nasceu à luz da carta profética de Pedro Casaldáliga e de tantas outras denúncias sobre a brutal exploração imposta aos peões, com o objetivo de acolher os trabalhadores fugitivos, de receber e encaminhar suas denúncias ao Grupo Móvel, de realizar trabalhos de prevenção junto às famílias em situação de vulnerabilidade e incidir diretamente na discussão de políticas públicas contra a escravidão.
Os dados da CPT apontam que de 1995 a 2024 foram resgatados mais de 65.000 trabalhadores em condição de escravo. Nesse mesmo período o Estado de Goiás registra 5.569 trabalhadores e nos últimos 2 anos ele tem figurado o ranking pelo número de trabalhadores libertados, sendo que em 2024 foram 83 em atividades rurais e 72 em atividades urbanas (construção civil).
Esse cenário nos leva a questionar: Por que depois de mais de 130 anos da abolição legal da escravidão no Brasil ou mais de 30 anos de atuação aguerrida dos fiscais do trabalho ainda estamos aqui discutindo esse grave problema? Isso pode ser explicado pelo ciclo vicioso que é a base do trabalho escravo no Brasil, um tripé que se constitui com base na miséria – causada pela concentração da terra e da renda; da ganância e da impunidade que abastece um sistema escravista que perdura e faz com que trabalhadores não tenham alternativas para sair desse ciclo. Lopes, 2009, afirma que “a pobreza é o principal propulsor da ultrapassagem de fronteiras geográficas. Em vista da ociosidade da mão-de-obra e do desemprego que assola [no campo] uma população que sempre trabalhou no meio rural, o trabalhador se sente obrigado a ir para as periferias das cidades, tornando-se vulnerável ao aliciamento”.
Por fim, vale destacar a atuação da CPT, que nos seus 50 anos de existência e 28 anos em Campanha Contra o Trabalho Escravo, não só denuncia as violências, mas constrói com os vários rostos de homens e mulheres que compõe o campo brasileiro alternativas de vida digna longe da escravidão.
Referências:
RAICE – Rede de Ação Integrada para Combater a Escravidão
CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social. São Félix do Araguaia, 1971. Forense Universitária: 1982.
LOPES, Alberto Pereira. Escravidão por dívida no norte do estado do Tocantins: vidas fora do compasso. 2009. 300 f.
FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Pisando fora da própria sombra: a escravidão por dívida no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1987. 287p.